Sonho. Arrumo a mala e sonho.
Fujo. Abro a concha e fujo.
Sinto. Descubro o mundo e sinto.
Cheiro. Fecho os olhos e cheiro.
Corro. Penso no regresso e corro.
Volto. Toco na terra e volto.
Mudo. Porque fui, mudo.
Escrevo. Para nunca deixar de ir, escrevo!

quinta-feira, 25 de março de 2010

English Breakfast


“Não quero ir embora!”

Ainda dormiam os galos de Portugal e as ovelhas da vizinha Gales, quando decidi virar costas e mochila ao luxuoso bairro de Edgbaston, em Birmingham. “Hoje vou conhecer Londres!”
Backpacker por um dia, escolhi o melhor transporte possível para uma aventura de deslumbramento até Londres: o comboio regional do pára-arranca em estações, apeadeiros e afins. Assim que fui descarregada na Marylebone Station os sentidos paralisaram diante das rosas de todas as cores que se arrumavam geometricamente nas bancas, como no Queens’ Garden do Regents’ Park. Estaria eu na Londres dos livros? Onde estavam o cinzento e o frio com que a mesma é caracterizada?
Tive sorte. Era Junho, e o céu britânico aparecia pintado de um ciano, que a Rute me conta não se ter repetido até hoje. Esse último “Verão decente”, como ela diz, foi aquele em que descobri uma Londres com todas as cores do arco-íris. A cúpula do Madame Tussauds’ é verde; as lojas de souvenirs da Oxford Street vendem chapéus de Sol; e o Hyde Park vira praia algarvia em tarde de Agosto, com amontoados de yes men engravatados e adolescentes semi-nuas expostos como lagartixas. Muitos e muitos turistas regressam aos seus países sem o privilégio de descobrir estas particularidades londrinas. Eu, comprei um bilhete premiado naquela estação de comboio em Birmingham!
Horário laboral cumprido nesse início de carreira de nómada, e tanto eu como o Sol não queríamos abandonar Londres. Tinha andado por muitas zonas da cidade, visitado imensos monumentos, fotografado tantas indumentárias futuristas … mas as horas não pareciam ter passado por mim. Ainda havia um mundo por descobrir. Sentia-me leve e cheia de energia. A carteira acompanhava a minha leveza, com as 30 libras que restavam. E o Visa? … ah, esse tinha ficado prometido a Fátima, pois os pecados já tinham sido muitos nos 4 meses de vida académica em Birmingham.

O Sol brincava às escondidas atrás do Big Ben e eu decidi: “Não quero ir embora!”

É então, que no reino dos protestantes, sou assolada pelos pensamentos menos católicos: “E se eu arranjasse um sítio onde dormir a custo zero?”; “E se fosse para o aeroporto?”; “E se inventasse que me tinham roubado?” ... Uma bíblia nada sagrada, onde cada pensamento que me surgia era uma passagem mais pecaminosa que a última. Shame on you Ana!
Mas quem disse que eu sou a santinha que aparentava a essa data? Quando o negava, ninguém acreditava. Então … resolvi que no regresso teria de provocar uns sonoros e adequados “Oh my God!”, para que acreditassem de vez, que aqui há lobo escondido em pele de cordeiro.

Waterloo Station

Emblema histórico que muitos visitam para relembrar os viajantes que partiam em missão militar, e em que escritores como Emily Grayson (autora do romance Waterloo Station) foram buscar inspiração para descrever a dor das muitas mulheres que ali beijavam pela última vez os seus companheiros. Esta estação, que numa pequena mancha de tempo permite a empresários e turistas passar de Londres a Paris, foi a premiada na minha selecção disfarçadamente racional do local perfeito para dormir (sem pagar).
Decisão tomada, aproveitei a noite londrina dos clubs e dos artistas de rua, até me fazer ao caminho. A escolha menos dispendiosa em tempo e dinheiro, uma vez que o trajecto foi feito a pé pela Tower Bridge e pela espelhada margem do Tamisa.
“Local perfeito”, foi o suspiro à entrada na estação. Dezenas de backpackers em topo de carreira dormitavam ou jogavam cartas nos bancos da cafetaria. “Eu, sou só mais uma”, foi o pensamento até à chamada para o último Eurostar do dia, altura em que todos partiram em manada, e só eu fiquei esquecida. “E agora?”, pensei a cada varridela que a empregada da cafetaria dava nas minhas botas cansadas. Fui empatar tempo aos toilets, abençoei o hábito de estagiária de enfermagem que carrega o necessaire como se do B.I. se tratasse, escolhi a roupinha para o dia seguinte (camisola de dentro passa para fora, vice-versa, a cuequinha S.O.S., e está o assunto arrumado!) … “chichi e banco”! Silêncio era coisa que não calculei existir num local como aquele, mas a verdade é que à 01h00 consegui ouvir o zumbido de um ou dois mosquitos antes de adormecer como um feto aconchegado num útero de ganga (blusão de ganga que parecera tão inútil debaixo do Sol radiante do dia, e que se revelara tão importante umas horas depois).
Hi sweetie! Do you need any help?”
“Estou a sonhar?”, “Onde estou?”, “O que é que se passa?”
Um segurança da estação aguardava com um sorriso simpático uma resposta minha. “Ai Deus, só passaram 15 minutos … ele já me devia ter visto. Não posso dizer que perdi o comboio para Paris.”
I missed the last train to Birmingham at Marylebone … I’m a student … I’m here alone … I have no money to pay a B&B …”
Oh dear! You’re safe here! If I wasn’t here all night, I’d offer you my place. You can sleep, that I’ll tell my guys to look after you! Do you want a hot drink? I’ll bring you some blankets!”
Definitivamente, isto parecia sonho. Aquecida por um chá com leite e por dois cobertores felpudos, dormi que nem anjo, sem sequer me aperceber do movimento que às 07h30m já agitava aquela estação.
O aroma inconfundível de um café quente e uma voz já familiar:
Good morning sweetie! I brought you breakfast!”
“Isto não pode ser verdade!”, pensei. Pete, um inglês com um sorriso rasgado, que me ofereceu cobertores, chá, vigilância nocturna … e ainda me levou o pequeno-almoço à cama/ao banco. Demorei a acreditar que a bagel de sementes com queijo e presunto era palpável. Mas era tudo verdade! Até o facto de ter sido vigiada por 4 câmaras estrategicamente colocadas em ângulos diferentes.
Demorei-me nos cuidados matinais no W.C. dos funcionários, conheci mais dois dos vigilantes que me protegeram toda a noite e ainda tive a simpática companhia do Pete até à London Tower (primeira paragem de mais um longo dia de turismo).


“Já que eles também trabalham por turnos rotativos … se isto hoje correr bem … vou mas é comprar uns trapinhos para vestir amanhã.”
Eram os meus últimos dias por terras britânicas. Não saberia se, nem quando voltava. E foi em Londres que passei os 3 dias e 2 noites mais marcantes de uma carreira de backpacker que agora já tem mais calos.
Ainda hoje, arrepio-me a cada vez que oiço clichés vindos das entranhas cobardes de quem ainda nem arriscou pisar o solo de sua Majestade, para sequer poder falar do seu povo: “Ah, os ingleses são frios e hostis!”, “Aquilo é demasiado cinzento para meu gosto.”, “São um povo pouco acolhedor.” …

Em quatro meses e meio de vida “à inglesa”, muito chorei pelo bacalhau com natas da mãezinha. Porém, assim que me soltei dos abraços adelgaçantes da família, dormi como uma criança e sonhei que me acordavam com um English Breakfast.